segunda-feira, 28 de julho de 2008

Das vidas que se perdem: o sangue e as lágrimas...

Em meio aos ruidosos carros de propaganda, e à euforia das centenas de paus-mandados que propagandeavam seus candidatos pela rua, um homem chorava um choro baixo, inconsolável pela perda recente de sua esposa. Eu estava ao seu lado, com doze reais na carteira e um valor impagável de ódio no coração. Fosse eu um "Xangô", deus-guerreiro, lançaria sobre esta terra infame centenas de raios, e a pó reduziria aqueles que gritavam lá fora,

Por que gritam? Por dinheiro, claro. Por dinheiro movem-se o mundo e todas as coisas. Pelo mesmo dinheiro imundo que era ainda fonte de agonia maior ao meu amigo: sequer havia conseguido a quantia necessária para dar a entrada no valor exigido pela funerária para o sepultamento de sua esposa.

Tenho esposa também. No momento em que ele me deu a notícia do falecimento, pensei nela. Por empatia, senti os olhos umidecerem, o que é cada vez mais raro, posto que a distância entre o mundo e o meu coração é cada vez mais maior por conta das atrocidades que já testemunhei ao longo dos anos...

Meu amigo lamentava, multiplamente impotente. Impotente diante da morte, como todos nós. Impotente diante do Estado que causa a morte ao impedir que todos tenham o mesmo acesso à saúde. Porém, mais que isso, impotente diante de si mesmo, por não ter podido, em vida, dispor dos recursos que poderiam ter auxiliado sua esposa a viver mais, e, mesmo após sua morte, continuar dependente da ajuda de outras pessoas para poder lhe dar um enterro digno. E ali, ao meu lado sentado, sentia-se impotente como desempregado diante do destino, com um filho de dez anos a quem lhe caberá prover o futuro.

Os sentimentos em meu coração se tornavam revoltosos. Já não sentia apenas tristeza e a empática dor pelo ocorrido. O ódio já pulsava em meu sangue. O ódio tão combatido pelos religiosos, que ensinam-nos a amar a paz, desde que "paz" signifique sermos montados por canalhas burgueses até o momento em que nos seja concedida uma recompensa no "céu"...

É verdade... A esposa de meu amigo morreu porque ele não tinha dinheiro para lhe dar cuidados médicos, porque o Município e o Estado não tinham a possibilidade de cuidar dela. Os religiosos dirão que havia nisso a "vontade de Deus", mas me oponho frontalmente a isso, pois não consigo conceber um deus que desejasse ver seus filhos agonizando, sangrando, morrendo, simplesmente por não terem o maldito dinheiro necessário a comprar o direito de continuar vivo, o direito a uma assistência médica. Não... Nenhum deus teria semelhante vontade...

O ódio subia em minha corrente sangüínea na mesma proporção que as lágrimas começavam a pesar nos olhos. Tivesse eu a graça de ter, naquele momento, os responsáveis pela gestão do governo e um fuzil automático e o prazer em mandá-los todos para o fundo do inferno seria indizível.

Mas eu não tinha esse fuzil... E nem os malditos à minha frente. Aliás... Estes geralmente nunca estão à frente de ninguém: como santos em um andor, andam sempre protegidos por todo um cordel de isolamento, como reis em meio aos plebeus que oprimem. Sim, não são governantes. Nunca houve governantes nesta terra de desgoverno, mas apenas reis. E reis reinam para si, absolutamente. Não é por outro motivo que os ingleses dizem "God saves the Queen!"

Sim... Talvez a prece dos britânicos tenha algum sentido... "Deus salve a Rainha"... Sim... Deus que a salve, porque se caísse na minha mão... Ao menos nesse momento, creio que os infernos seriam mais piedosos que eu...

Deliro... Por pouco perco a razão... Do que falo? O que estou dizendo? Não quero a Maldita Rainha da Inglaterra... E tão pouco me valeria acelerar a a chegada dos nossos governantes, políticos e serviçais ao inferno... Neste momento o que era necessário mesmo era possuir os R$400,00 que o meu amigo precisa para dar de entrada pelo enterro de sua esposa, morta não por uma hemorragia continua de vários dias, mas pela ineficiência do Estado, e pela roubalheira destes governantes, políticos e lacaios. Morta, sobretudo, pela nossa estupidez em conduzi-los ao poder. Morta por nossa covardia e alienação. Morta por não haver forças revolucionárias capazes de conscientizar, mobilizar, construir e conduzir a termo uma revolução socialista que desse ao povo trabalhador o direito à vida, e a esses mandatários do poder econômico o direito à justa expropriação, e ao desterro para o lugar fétido que suas almas egoístas e gananciosas merecem por morada eterna.

Torno a pensar no dinheiro, no maldito dinheiro. Em uma economia capitalista não só a vida é negócio, a morte também, e com direito à mais-valia... Estes R$400,00 não tenho eu. Tenho apenas doze reais na carteira, dos quais seis divido com ele para que compre um cartão telefônico a fim de ligar para algumas pessoas que conhece, humilhando-se em busca da quantia necessária para garantir alguns palmos de terra sobre o corpo já sem vida de sua esposa. Sem vida e sem dignidade: o Estado lhe roubou isso antes do último suspiro...

Não sei se me sinto feliz por poder ajudá-lo desta maneira ou envergonhado por lhe dar o instrumento com o qual ele se humilhará em um sem número de ligações...

Um outro amigo em condição melhor sinaliza para ele uma possível ajuda, pela noite. Já é uma esperança. Bom para ele...

De meu canto, remoendo-me ainda em ódio, confesso que minhas esperanças já são poucas. Não de que ele consiga o que precisa, mas de que este mundo, algum dia, deixe de ser esta caixa de torturas para toda essa gente que trabalha e se expreme nos trens da Central do Brasil.

E aqui me ponho a escrever... Não para extravasar, não é isso... É justamente o contrário... Escrevo para que esse ódio não morra. Para que essas letras o guardem no mesmo lugar onde guardo minhas poucas esperanças de um mundo justo.

Lá, espero, talvez este ódio me possa ser útil: talvez possa ele impedir que essas últimas esperanças também fujam, junto com as outras que já se foram, tal qual um guarda que vigiasse a seus prisioneiros.

Mundo louco este, onde os homens precisam vigiar até mesmo as suas esperanças...

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